
José Rubens do Amaral Lincoln
Ao primoroso editorial do jornal “Integração”, da última edição, sob o titulo “O RESPEITO POR UM MINISTRO DO STF”, no caso o ministro Celso de Mello, eu gostaria de complementar, com o meu testemunho, a questão da imparcialidade do decano, neste momento em que se avizinha o julgamento, pelo STF, sobre a constitucionalidade da prisão, após o julgamento pela segunda instância.
Conheço o ministro Celso de Mello desde os meus oito anos de idade. Isso mesmo: desde os meus oito anos de idade ! Mais do que conhecê-lo, eu convivi com ele, na minha infância, na minha adolescência e na minha juventude. E, para honra e gáudio só meus, convivo com ele, no por do sol de minha mísera existência.
Há cerca de meio século, em num jornal local, publiquei uma nota por meio da qual eu expressei minha grande admiração ao jovem Celso de Mello que, na ocasião, talvez nem integrasse ainda o glorioso Ministério Público paulista, onde ingressaria no honorabilíssimo primeiro lugar, em 1970. Naquele tempo já se antevia o seu engajamento na luta por um mundo mais justo e igualitário, ideal de que ainda se nutre sua alma generosa, feita da luz de todas as estrelas. A nota terminava mais ou mesmo assim, se me não trai a memória: (…) Trata-se de uma inteligência sem soberba, uma erudição sem afetação, um caráter sem jaça, uma honra sem tisne, uma consciência sem remorsos e uma bondade sem limites.
Bem, voltemos à questão da prisão, após a condenação em segunda instância. Conforme o referido editorial, “(…) o ministro recebeu mensagens enviadas por alguém de Tatuí, que na cidade falam “com raiva” dele em razão de seu voto ser pela presunção de inocência, como preceitua a Constituição Federal”.
E, segundo se infere do editorial, essa “raiva”, por parte do autor das mensagens enviadas ao ministro, decorreria de se supor que o voto do decano teria a intenção de beneficiar o Lula, prejudicar a Lava Jato etc.
Ora, como bem ressaltou o editorial, “(…) Poucos sabem que esta posição é defendida pelo ministro desde que ingressou no STF há mais de trinta anos. Sua primeira decisão foi em 7/11/1989, época em que ninguém falava em Lava Jato ou Petrolão, e Lula sequer era presidente da República”.
Digo eu: tal circunstância é uma prova irrefutável da isenção, da imparcialidade do decano, se ele votar pela constitucionalidade do artigo 283, do Código de Processo Penal, que, ao meu sentir, se ajusta a talhe de foice ao artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em consequência, não passam de delírios quixotescos (frutos da ignorância ou da má-fé, por parte do covarde autor daquelas mensagens e dos que pensam como ele), cuidar que o ministro estaria sendo faccioso se julgasse procedentes as ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs 43, 44 e 54), ou, em outras palavras, votasse contra a prisão, após a condenação em segunda instância.
O juiz, seja ele singular, desembargador ou ministro de um tribunal superior deve aplicar corretamente a Constituição e as leis da República.
Ao decidir, não pode o juiz atender sua opinião pessoal, suas idiossincrasias e nem ser movido por seus sentimentos. A criação das leis compete, como é curial, ao Poder Legislativo, cabendo ao juiz apenas aplicá-la, ainda que tenha de torcer o nariz, para tanto.
Neste passo, é importante distinguir lei de justiça. Uma não tem nada a ver com a outra, posto que, em princípio, aquela devesse refletir esta. Essa diferença entre lex (lei) e jus (justiça) é fundamental. Cabe ao Supremo Tribunal Federal, como de resto a todos os juízes e tribunais, aplicar a lei e a Constituição, com serenidade e prudência, aos casos que lhe são submetidos a julgamento.
Ao povo, representado pelos jurados, cabe fazer justiça, nos casos de julgamentos afetos ao Tribunal do Júri. O jurados, juízes de fato, diferentemente do juiz de direito, prestam juramento de fazer justiça, e, não, de aplicar a lei. Tanto é assim que estão isentos de fundamentar o seu voto. Já aos juízes dito togados (juízes monocráticos, desembargadores e ministros), a lei impõe a fundamentação de suas decisões.
Assim, compete aos ministros do STF aplicar a Constituição, cumprindo o juramento que fizeram ao ingressarem no honroso cargo. Quando o preceito constitucional é de extrema clareza, como o é o artigo 5º, inciso LVII, não há como deixar de aplicá-lo, sob pena de se quebrar aquele juramento sagrado, além de – entre outras gravíssimas consequências – por em risco a segurança jurídica, viga-mestra da paz social e da Democracia.
Tal preceito, por ser de clareza boreal, prescinde de interpretação, como já nos ensinavam os romanos, séculos atrás: In claris cessat interpretatio. E também não comporta gambiarras jurídicas, como, por exemplo, o prolongamento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória até julgamento de eventual recurso pelo STJ, que seria a terceira instância. A propósito, vem, igualmente dos romanos, a lição milenar no sentido de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir (Ubi lex non distinguit nec interpres distinguire potest).
Assim, se o eminente ministro Celso de Mello votar pela constitucionalidade da prisão somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não só estará cumprindo o juramento que fez, como, também, sendo absolutamente coerente com as decisões por ele proferidas a partir de 1989, sobre a mesma questão.
Com todo o respeito, penso que os ministros que votarem em sentido contrario, estarão, em última instância, travestindo-se em legisladores e usurpando uma função que cabe apenas ao constituinte. E penso também, com o mesmo respeito, que, lamentavelmente, eles estarão ouvindo mais as vozes das ruas do que o que diz a Constituição. Um deles, o eminente ministro Luís Fux, até confessou isso no voto confuso, demagógico e destrambelhado que já proferiu, nas aludidas ações de constitucionalidade.
Não deveria o juiz, ao julgar, curvar-se temerosamente à opinião publica, principalmente quando essa opinião se restringe apenas a alguns grupos de criminosos que – como bem disse o Ministro Celso de Mello – “vivem na atmosfera sombria do submundo digital”.
Neste passo, é de se lembrar a lição do grande Rui Barbosa: “Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos ! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.”
Celso de Mello, além de todos aqueles incontáveis predicados que o fazem um dos melhores juízes do Supremo, em todos os tempos, é também um juiz corajoso. Como bem destacou o mesmo editorial, “Quem acompanha a vida do ministro Celso de Mello sabe que ele não se curva a ameaças, principalmente, quando estas vêm de pessoas que, covardemente, utilizam as mídias digitais para condutas que resvalam para o campo criminal.”
Encerro esta manifestação subscrevendo as palavras de Francisco Rezek, ex-ministro do STF, proferidas recentemente, por ocasião dos trinta anos de Celso de Mello, na Suprema Corte: “(…) Mas na consagração dos deveres de ofício, na dedicação radicalmente exclusiva a esse trabalho desde o momento de sua investidura, e a cada instante desses trinta anos, a ponto de que renunciasse a toda atividade externa e até mesmo aos mais simples prazeres da vida social, nisso nunca houve na história do Supremo alguém como Celso de Mello, nem haverá depois dele.”
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